Esta Terra Tem Dono

PhotobucketHá três séculos, os índios das Missões plantavam para subsistência e vendiam o excedente. Hoje, só plantam para subsistência. Mas vendem artesanato, acreditam em Jesus Cristo e habitam um pedaço de terra equivalente à quinta parte do que têm, juntos, os dois candidatos a prefeito de São Miguel das Missões.

É provável que os guaranis não façam diferença em 5 de outubro: são 209 os descendentes de Sepé Tiaraju no município, incluindo bebês e crianças, além de jovens como Graziela, Giana, Martim e Daniel, que poderiam votar, mas não fazem questão.

Também poderiam estudar. Mas não fazem questão.

Os guaranis de São Miguel das Missões moram na aldeia Tekoá Ko’ënjú, a 30 quilômetros da cidade e das ruínas de seus antepassados. Têm nomes e sobrenomes brancos, por influência ou imposição. Como seus antepassados não escreviam – ao contrário dos brancos –, desconhecem o motivo da afluência ao local onde vendem artesanato. Já os turistas que visitam o sítio arqueológico dão pouca atenção ao artesanato dos guaranis.

Ou seja: o cartão-postal do Rio Grande do Sul recebe turistas brancos que pagam R$ 5 para fotografar restos do artesanato de guaranis de três séculos atrás, enquanto, no caminho, passam por guaranis que continuam fazendo artesanato. Os guaranis, por sua vez, ignoram a razão da afluência branca ao sítio, erguido pedra a pedra por seus antepassados, e seguem fazendo artesanato em troca da esmola dos brancos que os ignoram.

Jovens guaranis deixam de estudar para ajudar a família

Para chegar às ruínas, os guaranis de Tekoá Ko’ënjú pegam o ônibus que passa às terças e quintas na aldeia. A passagem custa R$ 7. A fim de economizar, os guaranis criaram um sistema: a cada semana, um grupo de oito ou nove embarca no ônibus para São Miguel. Os oito ou nove ficam por lá uma semana. Após, são substituídos.

Com o dinheiro que ganha na venda do artesanato, o grupo que volta passa no mercado e compra arroz, feijão e uma carninha. O arroz, o feijão e a carninha se somam ao milho, à mandioca e à melancia que os guaranis cultivam – mas não vendem – em 237 hectares. A cada dois meses, a Funai também manda um pouco mais de arroz e feijão.

Existe uma escolinha para as crianças dentro da aldeia. Ajuda a alfabetizar. Mas só isso. Quando crescem, as crianças devem optar entre continuar estudando numa escola distante ou vender artesanato nas ruínas. Ficam com a segunda alternativa.

Candidatos não visitam aldeia

Os guaranis já não comercializam o excedente da lavoura, como há três séculos, mas tiram do artesanato algum dinheiro, suficiente para comprar coisas como antenas parabólicas. Daí que os jovens guaranis que deixam de estudar para ajudar os pais a vender artesanato nas Missões acabam sem saber quem foi Sepé Tiaraju, mas assistem ao Shrek via satélite.

Enquanto a valentia de Sepé não cansa de ser lembrada – mais ainda em campanha eleitoral –, guaranis que têm título de eleitor, como Mariano Aguirre, 47 anos, e os que sequer sabem onde guardam a certidão de nascimento, como Augustina Benítez, 56, formam um tipo de consenso diferente daquele que os uniu na Guerra Guaranítica do século 18: hoje, estão dispostos a não ir votar, porque a urna é longe. Eles vêem pouco sentido no voto e também não conhecem os candidatos. Por sua vez, os candidatos, que não visitam a aldeia, parecem pouco se importar.


As Missões
Conheça um pouco mais sobre a história da região:
> As missões jesuíticas no Rio Grande do Sul, erigidas por ordem da Espanha a partir de 1682, tinham o objetivo de frear o avanço português nos domínios espanhóis. Nas missões, os padres catequizaram e organizaram os índios, construindo o que eles pretendiam que fosse a perfeita comunidade cristã.

> Auto-suficientes, os seis povos das missões (se tornariam sete com a fundação de Santo Ângelo) eram quase uma nação independente.Os padres respondiam apenas ao seu superior, nomeado pela Companhia de Jesus, em Roma.

> As missões seguiam um plano básico fixo, começando com a construção de uma cruz de madeira. Podiam abrigar até 7 mil pessoas.

> Em 1750, a Espanha trocou com Portugal as missões por Colônia de Sacramento, no atual Uruguai. Os índios guaranis, porém, se recusaram a deixar suas terras. A Guerra Guaranítica, entre os índios e tropas espanholas e portuguesas, legou ao Estado um herói guarani chamado Sepé Tiaraju. É atribuída a ele a expressão "esta terra tem dono".
SÃO MIGUEL DAS MISSÕES
População: 7.382 (contagem de 2007)
Eleitores: 5.974
Área: 1.230 quilômetros quadrados
Agências bancárias: 1
Distância de Porto Alegre: 483 quilômetros


MARCELO FLEURY

Fonte: Zero Hora, 18 de setembro de 2008 | N° 15730

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RamonR