O sul do Brasil é diferente. O sul tem seu próprio “calor”, climatológicamente e afetivamente falando; esta mais perto do Pampa, do índio, da milonga e do tango. Não por acaso, o povo do Rio Grande do Sul se chama “gaúcho” e sua música e suas expressões artísticas se assemelham a de nossos “hermanos”.
A estética imprimida, o que da origem aos trabalhos dos artistas gaúchos é a estética da melancolia, do recolhimento, da reflexão, da leveza e também a da sofisticação. O folclore, de bomboleguero e acordeom (que se chama gaita), viabilizou a mistura que produz desde o rock, canções melódicas, tradicionalistas, até o pop. Dando a música estas características próprias de uma cultura que se formou a base do cruzamento das fronteiras entre Brasil, Uruguai e Argentina. Uma palavra em comum tem reunido artistas diferentes daqui e de lá: O Tango.
Mas isso não é novo, conta à história que o primeiro disco de tango fabricado na América Latina, foi gravado e prensado em 1914 em Porto Alegre. Era "El Chamuyo" de Francisco Canaro, que ganhou como prêmio em um festival do Teatro Nacional de Buenos Aires. Como o mundo estava em tempos de guerra e as matrizes gravadas na Argentina não podiam ser levadas até a Europa para ser prensadas, se decidiu fazê-lo na fábrica “A Elétrica” de Porto Alegre. Talvez essa tenha sido a primeira semente dos projetos que viriam a acontecer nos anos 2000.
Quem sabe o tango é a chave, o segredo que permiterá nos conhecermos mutuamente e que vem ativando varias edições dos festivais de música Buenos Aires em Porto Alegre e Porto Alegre em Buenos Aires, mediante os quais, os públicos daqui e de lá tem a oportunidade de ver outros artistas mostrando outras formas de refletir um mesmo sentimento.
Durante o mês de março de 2003, foram realizados uma série de recitais gratuitos de artistas do Brasil na Argentina. Na caravana estavam: Jorginho do Trompete, Renato Borghetti, Vitor Ramil, Lourdes Rodrigues, Rubens Santos, Arthur de Faria, Muni, Nenhum De Nós, Bandaliera, Bebeto Alves e Totonho Villeroy. Estiveram acompanhados pelos músicos argentinos Chango Spasiuk, Brián Chambouleyron, Pedro Aznar, Esteban Morgado, Liliana Herrero, Raúl Carnota y La Chicana entre outros. Tudo organizado pela Secretaria de Cultura da Cidade de Buenos Aires, e de quebra, ainda tornou possível a reedição do disco "Porto Alegre canta Tangos" de onde participam vários desses artistas.
O CD é algo assim como a primeira coletânea fonográfica (pais e mães, protagonistas deste romance, são os muitos discos editados desde os anos 30 até hoje, dos muitos artistas que foram tecendo esta trama cultural) deste romance que começou a ser cultivado entre as duas cidades: Porto Alegre e Buenos Aires.
"Porto Alegre Canta Tangos" foi produzido pelo guitarrista argentino Esteban Morgado, que se encarregou de interpretar os sentimentos dos oito artistas brasileiros que cantam no disco e de, em alguns casos, aproximar as canções ao estilo dos interpretes. O que ao final é demonstrado pela satisfação com o trabalho final.
Dão vida aos 14 temas que integram o disco, oito vozes do Brasil, acompanhadas por outros músicos argentinos: Marcelo Torres no baixo, no piano Marcelo Macri, Walter Castro no bandoneón, Bernardo Baraj nos sopros e Esteban Morgado no violão. E também há outros músicos convidados como Lidia Borda, Damián Bolotin, Walter Castro, Horacio Mono Hurtado e os conjuntos de violões Pinta Bacán Con Burucuá, Margulis e Morgado.
O disco abre com uma versão de "Vuelvo al Sur", de Pino Solanas e Astor Piazzola, cantada por Bebeto Alves e Leonardo Ribeiro. Esta, como todas as versões do disco, é uma famosa canção, reformulada pelas particulares vozes de seus interpretes. E representa parte da filosofia deste trabalho.
Bebeto Alves, com sua voz lançada e furiosa, se converteu, ao longo de 25 anos de carreira, em um garimpeiro de novas sonoridades, sempre inovando na música do sul, se utilizando do folclore regional, da música popular de outras regiões do país e do pop/rock planetário (tal e como ele se descreve).
O segundo tema é “Melodía de Arrabal”, em uma versão de Vitor Ramil, cantada com o tom suave e doce que imprimiu o músico milongueiro. Nas apresentações ao vivo este era um dos temas mais aplaudidos pelo público argentino. Vitor Ramil, um jovem de 35 anos com 20 de música, se declara completamente enamorado pelos tangos do principio de século e a milonga é a matriz musical de sua obra atual. No disco canta também “Yira Yira”.
Lourdes Rodrigues é uma dama com uma voz implacável e genial. Tem 47 anos de carreira nas noites de Porto Alegre e escutá-la cantar segue sendo renovador. Ela encarna "El Último Café" e "Sin Palabras", com precisão e beleza.
A "Malena" deste CD é sem dúvidas a mesma de que falava Homero Manzi em 1941, porém vestida de farrapos, com um espírito roqueiro. Bebeto Alves realiza uma das versões mais incríveis deste trabalho. Também canta "Naranjo en Flor".
Leonardo Ribeiro se criou escutando rádios argentinas e tango, hoje em dia faz muito sucesso na Europa, em especial na França. Nascido em Quaraí (RS), cidade que faz fronteira com a uruguaia Artigas, Leonardo é um grande conhecedor da música latino-americana. Foi esse o repertório que ele apresentou aos europeus, adicionando, mais tarde, o jazz e ritmos caribenhos no seu currículo.
Embora fizesse sucesso desde os anos 70 fora do Brasil, só se tornou conhecido na sua terra no início dos anos 90. Leonardo teve a oportunidade de trabalhar com Teca & Ricardo, com o saxofonista americano, Barney Willen, com Nana Caymmi, Wagner Tiso, Robertinho Silva e Egberto Gismonti. Compôs várias músicas com Gonzaguinha, além de autores como Hélvius Villela, Ricardo Vilas e Juarez Fonseca. Também canta no disco as faixas "Uno" e "Volver", dois tangos que interpreta com a doçura de uma voz sentimental.
Após esta "Cafetín de Buenos Aires", na voz de Totonho Villeroy, compositor e cantor influenciado especialmente pelo samba, bossa nova, milonga e pelo pop. Sua descrição cantada de “Cafetín” é belíssima.
Agora a jóia deste CD, Rubens Santos, que com sua juvenil presença (90 anos), é uma verdadeira glória da música brasileira. Ele canta em português, mas transmite sua mensagem em um idioma universal. Quando subiu ao palco na apresentação do disco deu mostras de uma qualidade vocal imbatível, de um amor pela arte emocionante e da vigência sem idade da música. Canta no disco dois temas, "Venganza", de seu camarada gaúcho Lupicínio Rodrigues e "Uno", traduzida e adaptada por ele.
Na faixa 12 do disco aparece o sax inconfundível de Bernardo Baraj, que serve de base para a não menos inconfundível voz de Luciana Pestano. Sua interpretação do tango com mais versões da história, "El Día Que Me Quieras", é apaixonante e por momentos se entende que esta música poderia ter sido também parte do repertorio de uma Janis Joplin (Luciana Pestano é sua “alter ego” sul americana), que o sentimento do tango não tem fronteiras.
Hique Gomez realiza uma bonita e divertida versão de "Por una cabeza". E o Esteban Morgado Cuarteto realiza uma fusão de dois temas emblemáticos daqui e de lá. Tocam em versão instrumental "Felicidade" de Lupicínio Rodrigues e "Milonga de Mis Amores" de Contursi e Laurenz. Dão mostras de toda sua qualidade musical e do espírito do disco.
"Porto Alegre Canta Tangos" é um disco belo para quem quer que o escute, seja na Argentina, no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Os músicos que se atreveram a esta empreitada capturaram as canções com a entrega e o amor que o tango exige, e que o tango devolve. Os argentinos muitas vezes as tratam com respeito, mas também distância, mas neste disco recebem universalidade, versatilidade, presteza, vitalidade e atrevimento. Voltam a adquirir, em definitivo, esse espírito de rebeldia apaixonada que engendraram por estas águas, a mágica irreverência de umas almas querendo torcer seu destino com a ternura feroz da música. O tango neste disco encontra seu curso, se deixa levar pelas águas que o acalentaram num princípio e que aqui revivem sem solenidade, mas com arte.
"Vuelvo al sur como se vuelve siempre al amor.
Vuelvo a vos, con mi deseo, con mi temor.
Llego al sur, como un destino del corazón.
Soy del sur como los aires del bandoneón.
Sueño al sur, inmensa luna cielo al revés.
Busco el sur, el tiempo abierto y su después.
Quiero al sur, su buena gente, su dignidad.
Siento al sur, como a tu cuerpo en la intimidad.
Vuelvo al sur, llegó al sur ...."
("Vuelvo al Sur", Solanas-Piazzolla)
01 - Vuelvo al Amor - Bebeto Alves y Leonardo Ribeiro
02 - Melodia de Arrabal - Vitor Ramil
03 - El Ultimo Café - Lourdes Rodrigues
04 - Malena - Bebeto Alves
05 - Felicidade - Milonga de Mis Amores - Esteban Morgado Cuarteto
06 - Uno - Leonardo Ribeiro
07 - Cafetín de Buenos Aires - Totonho Villeroy
08 - Sin Palabras - Lourdes Rodrigues
09 - Venganza - Rubens Santos y Lidia Borda
10 - Volver - Leonardo Ribeiro
11 - Yira Yira - Vitor Ramil
12 - El Día Que Me Quieras - Luciana Pestano
13 - por una cabeza - Hique Gomes
14 - Naranjo en Flor - Bebeto Alves
15 - Uno - Rubens Santos
16 - Vuelvo al Sur - Bebeto Alves, Leonardo Ribeiro y Luciana Pestano
Traduzido e adaptado do jornal "El Clarin" por RR.
5 comentários:
Esta matéria é muito boa para termos uma idéia da importância dos músicos na atual cena gaúcha.
Para quem não é gaúcho, como eu, mas admira o Som do Sul, esta é uma ótima iniciação. Inicie-se já!!!!!!!
..eu procuro este cd há muito tempo , mas não existe no mercado mais...Será que alguem naum disponibilizaria.....GRATO!
Eu tb ando atrás dessa pérola rara... alguém?
Obrigado, obrigado!!!
link off!!!!!
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