Não é todo dia que aparece um artista brasileiro com o conceito de seu trabalho tão bem definido na cabeça como o cantor, compositor e escritor gaúcho Vitor Ramil, que acaba de chegar ao seu oitavo disco com Délibáb. A princípio, o nome do novo trabalho parece resultado do mesmo jogo de palavras que batizou seu último romance, Satolep (2008) – Pelotas, cidade onde nasceu, escrito de trás para frente. Mas não: a palavra húngara tem origem na junção de déli (do Sul) e báb (ilusão), cujo significado é miragem. Uma imagem que se perde no horizonte. O repertório é composto por 12 milongas escritas por ele para poemas do argentino Jorge Luis Borges e do gaúcho João da Cunha Vargas.
“Gosto muito de ler enciclopédias velhas. Estava mexendo numa delas aqui em casa, Nosso universo maravilhoso, que casualmente tem texto do argentino Ernesto Sábato, e nela encontrei a palavra e a descrição de délibáb. Aproveitei essa ideia no meu livro Satolep e, quando fui gravar o disco, me dei conta de que o que eu estava fazendo era muito parecido com o que fez o meu personagem no livro, um fotógrafo que viajou o mundo e volta da Hungria trazendo a foto de um délibáb. Era uma trajetória semelhante da minha parte: ir à Argentina e voltar de lá trazendo milongas que são milongas de outras milongas. Aí começa toda uma ideia de espelhismo muito forte”, explica Vitor.
O artista pinçou seis poemas do livro Para las seis cuerdas, de Borges (1899-1986), bem como foram seis os escritos que escolheu da obra de Vargas, homem do campo nascido na cidade de Alegrete e que não tinha o hábito de registrar o que criava – familiares e amigos costumavam fazê-lo. “Musiquei dois poetas que existiram, mas ao mesmo tempo esse disco tem uma dimensão ficcional muito grande, a começar pela própria poesia deles, que fala de coisas reais e, muitas vezes, ficcionais. O motivo do délibáb é esse: ver algo no horizonte que não está necessariamente lá, é imaginação, é projeção. Há vários jogos de espelho nesse trabalho”, completa.
Sua atração pelas milongas não é de agora e também faz tempo que começou a musicar poemas – inclusive os de Borges. Por exemplo: Milonga de Manuel Flores, incluída em Délibáb, foi o primeiro poema do argentino musicado por Vitor, quando tinha 19 anos – hoje tem 47.
Ao todo, fez música para oito escritos de Borges, seis das quais incluídas no disco. “Sabia que alguns haviam sido musicados pelo Piazzolla e esses eu não musicaria”, diz. Do mesmo autor, trouxe para o repertório Milonga de albornoz, Milonga de los morenos (participação de Caetano Veloso), Milonga de dos hermanos, Un cuchilo en el norte e Milonga para los orientales.
Já Vargas (1900-1980) é seu “conhecido” desde o disco Ramilonga (1997), quando musicou e gravou a poesia Gaudério. Desta vez Vitor escolheu seis poemas: Chimarrão, Mango, Tapera, Deixando o pago, Pé de espora e Pingo à soga. “Na metade dos anos 1990, um amigo me presenteou com um livro dele. Nem conhecia seus poemas e hoje já musiquei quase toda a obra dele”, conta. O interesse foi tanto que o artista foi visitar as terras que pertenceram à família de Vargas e levou consigo os filhos do poeta, que não conheciam o lugar. “Visitando os lugares, dei consistência ao trabalho, pois as milongas envolvem muita história e cultura. Foi fundamental”, observa.
MILONGA No que diz respeito à parte de Borges, esse esforço se traduziu na opção por gravar quase todo o disco em Buenos Aires, onde o escritor nasceu. “Por mais que me vire bem no espanhol, outra coisa é cantar e entender o sentido de algumas coisas. Há uma música que começa assim: ‘Allá por el Maldonado, que hoy corre escondido y ciego’. Quando estava lá, descobri que na rua em que eu ia para o estúdio corre o rio Maldonado, que foi canalizado. Parte das histórias do Borges e toda sua mitologia fui destrinchando ao longo das gravações”, afirma.
Além disso, o único músico que o acompanha no disco é de lá, o violonista Carlos Moscardini. Anos atrás, Vitor decidiu procurá-lo depois de ouvir um disco do músico. “Ele é assombroso, muito sutil e tira som maravilhoso do instrumento. Toco violão de aço, incomum nas milongas, e ele, de náilon. A soma ficou bem interessante”, elogia. Só recentemente, quando o gaúcho se preparava para um show em Porto Alegre, convidou o argentino para dividir o palco. A química entre os dois se fez evidente quando tocaram milongas de Borges e assim o público teve a chance de conferir antecipadamente o que viria a ser Délibáb.
O délibáb do Vitor, e o meu
O repertório, totalmente de milongas, foi apresentado na capital portenha na semana passada (durante o projeto Expreso Porto Alegre em Buenos Aires), e é uma pequena jóia dos pampas.
Reúne músicas compostas por Vitor a partir dos poemas do argentino Jorge Luis Borges, publicados originalmente no livro Para las seis cuerdas, e dos versos do brasileiro João da Cunha Vargas, registradas na voz do poeta em fitas cassete, e posteriormente publicadas em seu único livro, Deixando o Pago.
Ramil destaca que guardadas as imensas diferenças entre as vidas e as obras dos dois autores, “suas imagens se projetam nitidamente no horizonte de um sul mítico, tocando-se em determinados pontos”.
Ambos foram homens de memória prodigiosa.
“A memória de Borges, poeta culto, é celebre, abarcava sua poesia, conferências e versos de outros autores, em mais de um idioma. A memória de Vargas, poeta popular, guardava sua poesia, já que ele não costumava escrever seus versos. Borges escreveu sobre o gaúcho. Vargas foi o próprio gaúcho”, diz.
Por outro lado, enquanto os versos de Borges são pródigos em facas, “peleias”, sangue e morte, os de Vargas são mais doces, mais amorosos, mais melancólicos.
Vitor conta que as marcas de cada um são tão fortes que se refletiram nitidamente nas músicas que ele compôs. Assim, as milongas para os versos de Borges são em geral mais clássicas, épicas ou rítmicas, fiéis à afinação tradicional do violão. Para Vargas são mais próximas da música brasileira, líricas e sentimentais.
Ramil namora as milongas desde cedo. “Elas me emocionam”, diz. Compôs a primeira aos 17 anos, Semeadura, gravada por Mercades Sosa com o nome de Siembra. Em seguida, aos 19 anos, gravou Milonga de Manuel Flores, de Borges, mas em português. Três anos depois, musicou Gaudério, de Vargas.
De lá para cá não parou mais. Tem hoje musicado sete poemas do livro de Borges e quase toda a obra de Vargas, que é pequena.
Moscardini, a outra ponta do disco, é um profundo conhecedor da musica argentina dita de raiz e é um “sujeito pampeano”, como classifica Vitor. O trabalho dos dois pertence à mesma querência, se completam, se justificam. Isso é claro.
Ambos se deliciam com a possibilidade de que Borges e Vargas tivessem se visto um dia, mesmo que de longe.
Os poetas estiveram fisicamente próximos, sem saber, evidentemente, quando Borges passou uma temporada na estância Las Nubes, em Salto Oriental. Vargas vivia a alguns quilômetros dali, em Alegrete, no Rio Grande do Sul. E os dois fariam 110 anos (Borges em 2009 e Vargas este ano).
“Não teriam eles pelas suas andanças em campos extensos naquela zona de fronteira entre Uruguai e Brasil avistado os vultos um do outro ao longe, nem que fosse como um délibáb", pergunta Ramil.
Poderia escrever muito mais sobre o disco e a entrevista, e contar que não é a primeira vez que Borges é musicado, que Piazzolla e Troilo possuem suas interpretações, que Caetano terá participação especial em Milonga de los Morenos, e que a foto da capa do disco foi feita do alto do Kavanagh, prédio emblemático da capital portenha.
Mas prefiro encerrar dizendo que ter uma “charla” com Ramil e Moscardini, dois músicos que admiro muitíssimo, em pleno coração de Buenos Aires, e falar de milonga, de frio, de Borges, de Sul, de espelhismos e planícies e horizontes foi, isso sim, o “meu” délibáb. Mistura de babar e de delícia.
DIVIRTA-SE:
Vitor Ramil - (2010) Délibáb
01. Milonga De Albornoz
02. Chimarrão
03. Milonga De Los Morenos
04. Mango
05. Milonga De Los Hermanos
06. Tapera
07. Un Cuchillo En El Norte
08. Deixando O Pago
09. Milonga De Manuel Flores
10. Pe De Espora
11. Milonga Para Los Orientales
12. Pingo A Soga
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